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Motorista de aplicativo - Sentença

ATA DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO

Proc. nº 0000388-20.2022.5.17.0005 - 5ª Vara do Trabalho/Vitória

Aos seis dias do mês de setembro do ano dois mil e vinte e dois, às 16:45 horas, na Sala de Audiências desta 5ª Vara do Trabalho da cidade de Vitória/ES, na presença do Exm°. Juiz do Trabalho Dr. LUIS EDUARDO SOARES FONTENELLE, foram apregoados os litigantes THIAGO ANDRÉ NIMER ROSSONI, Reclamante, e UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA, Reclamada.

Partes ausentes.

Obedecidas as formalidades legais, passou-se a proferir a seguinte

S E N T E N Ç A

R E L A T Ó R I O

Vistos etc.

THIAGO ANDRÉ NIMER ROSSONI ajuiza reclamação trabalhista em face de UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA pelas razões fático-jurídicas expostas na causa de pedir, formulando os respectivos pleitos e anexando documentos.

Conciliação recusada.

Resposta da Reclamada com exceções de incompetência da Justiça do Trabalho e, no mérito, pela improcedência total da demanda, anexando documentos.

A Reclamada reiterou requerimento da contestação relativo ao aproveitamento da prova emprestada ali mencionada, o que foi deferido.

Ouvidas as partes, pelo sistema de gravação audiovisual Zoom.

Declararam as partes não haver outras provas a produzir. Encerrada a instrução, as partes apresentaram razões finais escritas. Parecer do Ministério Público do Trabalho. Permaneceram inconciliáveis.

F U N D A M E N T A Ç Ã O

  1. Da Competência da Justiça do Trabalho

Não resta qualquer dúvida acerca da competência da Justiça do Trabalho para apreciar e decidir a presente demanda, uma vez que o art. 114, I, da Constituição Federal, estabelecendo a primazia da especialização por meio do critério da competência ratione materiae, confere-lhe a atribuição de processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho – o que abrange, como corolário lógico, as que se refiram a controvérsias quanto à natureza da relação de trabalho, e, mais, à definição entre o vínculo laboral e qualquer outro tipo de relação jurídica, a exemplo da natureza comercial invocada pela Reclamada no caso vertente.

Rejeita-se a exceção.

  1. Da Relação de Trabalho e sua Terminação

O Reclamante pleiteia o reconhecimento da relação de emprego com a Reclamada, por contrato de trabalho intermitente, na função de motorista, com remuneração mensal de R$ 2.000,00 (dois mil reais), pelo período entre 21.01.2021 e 21.10.2021, encerrado sob a modalidade de dispensa sem justa causa.

A Reclamada contesta, argumentando, em síntese, que a relação jurídica mantida com o Autor assumiu cunho meramente comercial, estando ausentes, na realidade da prestação de serviços, os requisitos configuradores da relação de emprego. Ressalta que seus fins sociais precípuos não consistem na atividade de transportes, mas o “Desenvolvimento e licenciamento de programas de computador customizáveis”.

O desate da lide é mais simples do que aparenta, dada a presença e a clareza dos pressupostos caracterizadores da relação de emprego no caso em tela, tanto sob o prisma da atividade econômica empreendida pela Reclamada, quanto sob o ponto de vista dos serviços prestados pelo Autor.

Com efeito, sob o primeiro aspecto, trata-se meramente de não se confundir a ferramenta com o produto, a forma com o conteúdo, o processo com a ação, o meio com a finalidade. Diferentemente do que sugere o objetivo social acima transcrito, o destinatário do serviço não aciona o aplicativo da Uber como um fim em si mesmo, nem ao fazê-lo busca o serviço específico do motorista A ou B – se o fizesse, presume-se que o contato será estabelecido diretamente com a pessoa física prestadora -, mas tem em mente, antes de tudo, que a empresa selecionará um profissional para atendê-lo, sendo irrelevante, sob a ótica do consumidor, que a escolha se faça pessoalmente ou pelo modo algorítmico.

Neste sentido, o serviço da Uber não difere de outros grupos empresariais notória e formalmente dedicados ao serviço regular de transporte urbano/rodoviário de passageiros. Um exemplo local evidente é o do grupo Águia Branca, que desde 1946 se empenha nessa atividade e, em 2017, criou um serviço de transporte executivo por demanda, o V1, que opera por meio de aplicativo e mantêm motoristas com Carteira assinada, sujeitos a escalas que chegam a doze horas diárias e sobre cujo serviço jamais pairou qualquer dúvida a respeito da formação da relação de emprego.

Fora do ramo de transportes, é igualmente notório que muitas outras grandes empresas, com destaque para os bancos – Itaú, Santander e outros - e o setor de varejo, mantêm serviços de vendas por aplicativo concomitantemente às agências ou lojas de rua ou de shopping centers – caso de Renner, Lojas Americanas, Magazine Luiza etc. E nem por isso são conhecidas como “empresas de aplicativos” ou algo semelhante.

Portanto, assim como o estabelecimento físico, a plataforma digital é apenas um instrumento, componente virtual do fundo de comércio, pelo qual se exprime a atividade econômica essencial.

Tanto isto é verdade que a própria Reclamada, conquanto propale que seu objeto social preponderante se resuma à elaboração e à disponibilização de plataformas digitais, ao procurar registrar sua marca perante o INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial -, no processo administrativo 840.466.854, requereu que se o fizesse na condição de empresa de transportes, o que foi indeferido por aquele órgão, em 21.03.2016, sob o fundamento de que a marca Uber colide com outras do setor invocado pela própria Reclamada, como, por exemplo, a Trans-Uber (parecer da Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região, ID d8a078d, págs. 24 a 27).

Ao recorrer da decisão, em petição endereçada à Presidência do INPI, a Reclamada apresentou-se como “empresa multinacional americana de transporte privado urbano baseado em tecnologia disruptiva de rede, através de um aplicativo E-hailing que oferece um serviço semelhante ao táxi nacional, conhecido popularmente como serviços de ‘carona remunerada’” (grifo nosso). A teor da própria Reclamada, não poderia ficar mais claro: o transporte urbano de passageiros como atividade principal, a tecnologia disruptiva via aplicativo como base instrumental de seu desempenho.

Não bastasse, em preliminar do mesmo recurso, a Reclamada requereu expressamente a restrição de seus serviços, de modo a que passasse a ser designada “Prestação de serviços de transporte de passageiros e reservas para serviços de transporte de passageiros; transporte de passageiros; organização de viagens”.

A jurisprudência internacional tem caminhado resoluta na mesma direção. Em 20.12.2017, o Tribunal de Justiça da União Europeia, analisando denúncia de concorrência desleal apresentada por taxistas de Barcelona, na Espanha, estabeleceu que a intermediação do Uber integra um serviço global cujo elemento principal é um serviço de transporte, que se distingue do serviço prestado à sociedade da informação.

Em 19.02.2021, a Suprema Corte do Reino Unido publicou sua decisão sobre o caso Aslam vs Uber (2018 EWCA Civ 2748), mantendo as sentenças proferidas nos Tribunais trabalhistas – sim, naquele país eles também existem – que, muito embora os classifiquem como uma figura intermediária entre empregados e autônomos, define os motoristas da ora Reclamada como “trabalhadores”, afastando a suposta natureza “comercial” da relação jurídica e lhes assegurando direitos que, em nosso ordenamento, são reservados aos empregados, como piso salarial, férias e limites à jornada de trabalho. Cumpre ressaltar que a figura do “parassubordinado”, admitida em países como o próprio Reino Unido, Itália e Espanha, não é admissível em nossa ordem jurídica, face à garantia constitucional da isonomia.

No mesmo sentido, reconhecendo o vínculo de emprego ou, quando muito, a condição de trabalhadores parassubordinados, decisões se espraiam pelo mundo, valendo citar os exemplos de França, Alemanha, Espanha, Países Baixos, Austrália, Argentina e Colômbia, dentre outros.

Quanto ao Brasil, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, no julgamento do RR 100353-02.2017.5.01.0066, pontificou, nas palavras do Exmº Ministro Relator, Maurício Godinho Delgado, que “a mera delimitação formal do objeto social da Empresa, com explicitação da finalidade e gênero de suas atividades, não é hábil a delinear, no âmbito prático, a natureza das relações trabalhistas desenvolvidas em favor do ente empresarial. O enquadramento jurídico do trabalho prestado em favor da organização empresarial deve se dar em observância ao princípio juslaboral da primazia da realidade sobre a forma, independentemente da roupagem formal adotada pela instituição que se beneficia da força de trabalho do ser humano.

Assim, embora não se desconheça que a Empresa desenvolve tecnologias como meio de operacionalizar seu negócio, ela, efetivamente, administra um empreendimento relacionado à prestação de serviços de transporte de pessoas – e não mera interligação entre usuários do serviço e os motoristas cadastrados no aplicativo.

Ademais, a experiência comum subministrada pelo que ordinariamente acontece no plano dos fatos demonstra que a Reclamada se projeta e se expande no mercado como provedora de serviços de mobilidade urbana (transporte de pessoas) e, para explorar esse segmento econômico, utiliza-se da força de trabalho da pessoa humana. Note-se que o usuário do transporte não é cliente do motorista, mas da própria Empresa. Essa compreensão, aliás, também é respaldada na experiência do Direito Comparado, conforme autoriza o art. 8º caput, da CLT (decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, mencionado alhures).

O que a prova coligida no processo e referenciada pelo acórdão recorrido demonstrou que a Reclamada administra um empreendimento relacionado ao transporte de pessoas – e não mera interligação entre usuários do serviço e os motoristas cadastrados no aplicativo – e que o Reclamante lhe prestou serviços como motorista do aplicativo digital (…)”.

A evolução tecnológica pode parecer – e é – impressionante. Mas, como se vê, a chamada “revolução 4.0”, tanto quanto os demais estágios anteriores da evolução organizacional produtiva, de que são exemplo as transições para o fordismo e o toyotismo, apenas modifica a dinâmica pela qual se expressa, sem chegar a interferir a substância da relação de emprego, que para tanto demandaria a mudança não do modo de produção, mas de todo o modelo econômico capitalista.

Passa-se, doravante, a apreciar a questão sob o ponto de vista do serviço prestado pelo motorista.

Os requisitos configuradores da relação de emprego, como é de curial conhecimento, encontram-se no art. 3º da CLT. À devida apreciação de cada um.

A onerosidade é patente e incontroversa, consistindo em parte do valor pago pelo cliente ao Uber, que ato contínuo efetua o repasse da parcela devida ao motorista.

O serviço prestado pelo motorista também pode ser qualificado como não-eventual, pois, apesar de individualizado sob o ponto de vista do usuário, tem previsão de repetibilidade, inserindo-se na rotina da atividade precípua empresarial, que vem a consistir no próprio objeto do recrutamento inicial do motorista, afastada, portanto, a acidentalidade ou a caracterização de trabalho por obra certa (empreitada).

Por seu turno, a pessoalidade resta caracterizada pelo fato de que o contratado é o motorista, mediante o preenchimento de um cadastro que demanda informações sobre o indivíduo, este por sua vez despendendo diretamente sua própria energia física e mental, e não por pessoa física ou jurídica interposta. O motorista não se faz substituir por conta própria, pois, muito embora se lhe abra a possibilidade de recusar a corrida, a substituição é feita pelo algoritmo do aplicativo, mediante parâmetros preestabelecidos pelo Uber.

Finalmente, o principal requisito: o da subordinação jurídica. O art. 6º, parágrafo único, da CLT, introduzido pela Lei 12.511/2011, ratifica que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”, o que corrobora o entendimento já esposado quanto ao caráter instrumental da utilização das plataformas digitais e afasta definitivamente qualquer interpretação que cogite a incompatibilidade entre seu manejo e a formação da relação de emprego, e estabelece o elo entre os conceitos doutrinários das subordinações tradicional e estrutural.

Neste aspecto, a análise da matéria controvertida ganha contornos mais nebulosos. Mesmo assim, é possível identificar, no caso em apreço, uma verdadeira plêiade de seus aspectos característicos.

A começar pela formação do contrato. O motorista passa a prestar serviços após firmar, por meio de um instrumento denominado “Termos e Condições Gerais dos Serviços de Intermediação Digital” (ID 6de9daa), um contrato tipicamente adesivo. Na definição de Caio Mário Pereira, “aquele que não resulta do livre debate entre as partes, mas provém do fato de uma delas aceitar tacitamente as cláusulas e condições previamente estabelecidas pela outra”.

Não por acaso muito utilizado nas relações de consumo, outro tipo de liame jurídico quase tão desbalanceado quanto a relação de emprego, sob a ótica socioeconômica, o contrato de adesão impede a negociação que discuta ou modifique substancialmente seu conteúdo. Trata-se do caso do contrato celebrado entre a Ré e o motorista, que se vê diante de duas únicas opções: assinar ou se recusar e ficar sem o trabalho.

Mas é durante a execução do contrato que a subordinação se revela com mais intensidade. Notoriamente, como se denota do simples uso do aplicativo, o preço da corrida é definido pelo algoritmo, isto é, conforme os parâmetros de cálculo introduzidos pela Reclamada, sem qualquer possibilidade de ingerência pelo Reclamante, que tampouco interfere no percentual da remuneração que lhe cabe, na divisão com a Reclamada do valor pago pelo usuário.

Tal conclusão se lastreia na cláusula 4.1 do Termo Geral, que subdivide o chamado Preço Total do Serviço de Transporte em dois subpreços, a saber: a) Parcela Variável do Serviço de Transporte: preço básico acrescido da distância (“conforme determinado pela Uber com o uso de serviços baseados em localização ativados por meio do Dispositivo) e/ou quantidade de tempo, conforme detalhado em www.uber.com/cities para o Território aplicável (‘Cálculo do Preço’)” (grifos nossos); e b) Parcela Fixa do Serviço de Transporte, equivalente ao custo fixo.

Também a suposta liberdade, que o motorista alegadamente possui para se manter conectado ou recusar corridas, constitui uma simples concessão inserta no poder diretivo, na medida em que submetida a rígidos limites, notadamente de tempo, unilateralmente “concedidos” – termo usado no contrato - pela Reclamada, que mantém um sistema de avaliação do motorista, constantemente alimentado pelo usuário e direcionado ao algoritmo, e de cujo resultado depende diretamente a continuidade do cadastramento.

Tal circunstância repercute de forma reflexa nos horários e na extensão da jornada desenvolvida pelo motorista, configurando, a um só tempo, os poderes de direção e controle da execução dos serviços, inclusive sob o aspecto disciplinar, plenamente identificados com a titularidade da atividade econômica, exercida pelo empregador comum.

Com efeito, a cláusula 2.6.2 do contrato de adesão reza expressamente que “Para continuar a receber acesso ao Aplicativo de Motorista e aos Serviços da Uber, o(a) Motorista reconhece que precisará manter uma avaliação média, dada pelos(as) Usuários(as), que exceda a avaliação média mínima aceitável pela Uber para o Território, conforme for atualizada pela Uber, a qualquer momento e a seu exclusivo critério (“Avaliação Média Mínima”). Caso a média de avaliação do(a) Motorista fique abaixo da Avaliação Média Mínima, a Uber notificará o(a) Cliente poderá dar ao(à) Motorista, a critério da Uber, um prazo limitado para que eleve sua média de avaliação para acima da Avaliação Média Mínima. Caso o(a) Motorista não eleve sua média de avaliação acima da Avaliação Média Mínima no prazo que lhe foi concedido (se for o caso), a Uber poderá desativar o acesso desse(a) Motorista ao Aplicativo de Motorista e aos Serviços da Uber. Ademais, o(a) Motorista reconhece e concorda que se o Motorista deixar reiteradamente de aceitar solicitações de Usuário(a) para Serviços de Transporte enquanto o(a) Motorista estiver conectado(a) ao Aplicativo de Motorista isso cria uma experiência negativa para os(as) Usuários do Aplicativo móvel Uber. Assim sendo, o(a) Cliente concorda e assegura que, caso um(a) Motorista não deseje aceitar solicitações de Usuários para Serviços de Transporte por um período de tempo, esse(a) Motorista deverá se desconectar do Aplicativo de Motorista” (grifos nossos).

Conclui-se, pois, que o motorista: a) por ocasião da contratação, não dispunha de qualquer autonomia para negociar e lograr inserir cláusulas de seu interesse, sendo obrigado a se conformar com a adesão a condições impostas unilateralmente; b) durante a execução do contrato, não possuía, em absoluto, nenhuma liberdade para definir preços e rateios da corrida; c) no mesmo contexto, amargava estreitíssimo espaço para se desconectar e recusar corridas, sendo-lhe vedada a seleção de clientes, uma vez submetido a avaliação, promovida pela Reclamada também sob tal critério, que a depender do resultado poderia acarretar sua exclusão da plataforma.

Estes dois últimos fatores, aliás, constituíram a fundamentação determinante pela qual a Corte de Cassação francesa, no julgamento do recurso 19-13.316, concluiu, em 04.03.2020, pela existência do liame empregatício entre o motorista e o Uber. Transcrevem-se doravante os trechos mais importantes, que se aplicam ao presente caso, mutatis mutandis - tradução livre deste Magistrado:

“No tocante aos preços, a corte de apelação aponta que são contratualmente fixados pelos algoritmos da plataforma Uber através de um mecanismo preditivo, impondo ao motorista um itinerário específico do qual não tem livre escolha, pois o contrato prevê em seu artigo 4.3 a possibilidade de ajuste do preço pelo Uber, notadamente se o motorista tiver escolhido um ‘itinerário ineficaz’”, efetuando várias correções tarifárias, aplicadas pela empresa Uber BV e que espelham o fato de esta haver fornecido as diretrizes e controlado sua aplicação”.

“Relativamente às condições de desempenho do serviço de transporte, a corte de apelação constatou que o aplicativo Uber exerce controle no que concerne à aceitação das corridas, pois, sem ser desmentido, o motorista afirma que, depois de três recusas a solicitações, recebia a mensagem ‘Você ainda está aí?’, a central exortando os motoristas que não desejassem aceitar corridas a ‘tão simplesmente’ se desconectar; que esse convite deve ser interpretado à luz das estipulações do item 2.4 do contrato, a saber: ‘A Uber se reserva igualmente ao direito de desativar ou, de outra forma, restaurar o acesso ou a utilização do Aplicativo Motorista ou dos serviços Uber pelo cliente ou qualquer de seus motoristas, ou por qualquer outra razão, a critério da Uber’, o que tinha por consequência incitar os motoristas a permanecerem conectados para poder efetuar uma corrida, e, assim, manter-se constantemente à disposição da empresa enquanto durasse a conexão, sem poder real de escolha, como teria um motorista autônomo de escolher a corrida que lhe conviesse; tanto que o item 2.2 do contrato estipula que o motorista ‘receberá o destino do usuário, ou pessoalmente durante o serviço, ou por opção do usuário em inserir o destino por meio do aplicativo Uber do celular’. Isto implica que o critério de destino, que pode condicionar a aceitação de uma corrida, é desconhecido do motorista até que ele responda a uma solicitação da plataforma Uber, o que é confirmado pela constatação do oficial de justiça, exarada em 13 de maio de 2017, a indicar que o motorista dispõe de apenas oito segundos para aceitar a corrida que lhe é oferecida”.

Por todo o exposto, quer em razão da natureza da atividade prestada pela Reclamada, quer pelo tipo de serviço desempenhado pelo Autor, tem-se por sobejamente demonstrados, no caso vertente, os requisitos do art. 3º da CLT, a saber: onerosidade, ineventualidade, intuitu personae e subordinação jurídica.

Cumpre, então, reconhecer a formação do vínculo de emprego entre as partes, pelo período entre 21.01.2021 e 21.10.2021, sob a modalidade intermitente requerida pelo próprio Autor e já considerada, nesta última data, a projeção do aviso prévio indenizado, na forma da Lei 12.506/2011, em face da caracterização da dispensa sem justa causa por iniciativa do empregador, uma vez que o documento do ID 642351f comprova que o desligamento da plataforma ocorreu sob o pálio dos critérios algorítmicos unilateralmente fixados pela Reclamada. Condena-se a Ré a anotar e baixar a Carteira de Trabalho do Autor, observada a função de motorista, sob pena de a Secretaria da Vara fazê-lo (art. 39, § 1º, da CLT).

Como corolário do liame empregatício aqui reconhecido, e da modalidade de dispensa então prevalecente, acolhem-se os demais pedidos formulados na inicial, condenando-se a Reclamada a pagar ao Reclamante os valores correspondentes às seguintes rubricas: aviso prévio; 9/12 do 13º salário; 9/12 de férias proporcionais + 1/3; FGTS; multa de 40% de todo o período contratual, e multa do art. 477 da CLT – esta última, devida pelo fato de que o reconhecimento pela via judicial não afasta a mora, em razão da dissimulação do caráter empregatício da relação de trabalho.

Observe-se como base de cálculo a remuneração mensal de R$ 1.588,84 (mil quinhentos e oitenta e oito reais e oitenta e quatro centavos), correspondente ao piso salarial do motorista, fixado na Convenção Coletiva de Trabalho 2020/2021 aplicável na base territorial do Estado do Espírito Santo.

  1. Das Indenizações por Danos Morais

O Código Civil de 2002 define o ato ilícito pela conjugação dos elementos estabelecidos nos artigos 186 e 187, ficando sujeito a reparação aquele que causar dano a outrem. No que tange à lesão na esfera moral, seu lastro encontra-se elevado ao plano constitucional, figurando nos incisos V e X do art. 5º da Carta Republicana.

A condenação em indenização por dano moral que decorra de relação de trabalho pressupõe a efetiva existência de ato ilícito ou erro de conduta do empregador ou de preposto seu, acarretando lesão ao patrimônio jurídico imaterial do ofendido, além do nexo de causalidade entre a conduta antijurídica e o prejuízo causado.

No caso vertente, a recusa prolongada e deliberada da Ré em anotar a Carteira profissional do Autor, submetendo-o a regime de trabalho precarizado, importa em agressão à dignidade e à autoestima do trabalhador, dada a insegurança advinda da desproteção social e previdenciária e a sensação de inferioridade e discriminação em face de outros colegas de trabalho aos quais se assegurou a tutela.

Cabe, tão somente, quantificar o valor pela medida da extensão do dano, conforme o preceito do caput do art. 944 do Código Civil. O resultado não poderá ser exagerado de modo a propiciar o enriquecimento indevido da vítima, nem tão moderado que venha a representar um estímulo à prática de novas ilicitudes.

Leciona Cláudio Armando Couce de Menezes que “a reparação será apurada levando-se em conta as condições econômicas, sociais e culturais de quem cometeu a falta, e, principalmente, de quem a sofreu. A intensidade do sofrimento, a gravidade da repercussão da ofensa e a posição do ofendido, a intensidade do dolo ou o grau de culpa do responsável, um possível arrependimento evidenciado por fatos concretos, a retratação espontânea e cabal, são elementos dignos de nota para o estabelecimento do quantum da compensação. Por sua vez, a conjuntura econômica, a eqüidade e as “regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece” (...), representam, igualmente, dados relevantes ao estabelecimento do valor devido a título de indenização por danos morais” (Direito Processual do Trabalho, Editora LtR, 1996, pág. 164).

Sob tais parâmetros, acolhem-se as pretensões autorais dos itens h e i, fixando-se o valor da indenização por danos morais no equivalente a três vezes a remuneração mensal do obreiro, isto é, em R$ 4.766,52 (quatro mil, setecentos e sessenta e seis reais e cinquenta e dois centavos). Condena-se a Ré ao respectivo pagamento.

  1. Dos Honorários Advocatícios e da Assistência Gratuita

Concede-se ao Reclamante o benefício da assistência judiciária gratuita, nos termos do art. 790, §§ 3º e 4º, da CLT, uma vez que as Reclamadas não lograram elidir a presunção, decorrente da própria situação de desemprego involuntário a que foi relegado, de que o Autor não possua renda mensal equivalente ou superior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, ou renda suficiente ao pagamento das custas do processo sem prejuízo da subsistência própria e/ou da família.

Nos termos do caput do art. 791-A, da CLT, fixam-se os honorários advocatícios de sucumbência, devidos pela Reclamada, em 15% (quinze por cento) sobre o valor atualizado da causa.

Registre-se que a sucumbência é aferida pelos pedidos considerados em bloco, e não pelos itens ou valores atribuídos a cada um na inicial, consoante a inteligência da Súmula 326 do STJ.

D I S P O S I T I V O

PELO EXPOSTO, esta 5ª Vara do Trabalho de Vitória/ES julga a reclamação PROCEDENTE, condenando a Reclamada a anotar e baixar a CTPS do Autor, pagar-lhe as verbas decorrentes das parcelas acima deferidas e arcar com os honorários advocatícios de sucumbência, tudo conforme fundamentação supra, que este decisum passa a integrar.

Valores já liquidados, conforme planilha que se segue e constitui parte integrante desta sentença.

Juros e correção monetária considerando a incidência do IPCA-E na fase pré-judicial e, a partir do ajuizamento da ação, a incidência da taxa SELIC, nos termos das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ADCs 58 e 59, e ADIs 5867 e 6021.

Responsabilidade pelos créditos previdenciários na forma da Súmula 368 do E. TST. Observem-se no que couber, quanto às contribuições fiscais, a desoneração prevista na Lei 12.546/2011, a Instrução Normativa 1500/2014 da Receita Federal e a Orientação Jurisprudencial 400 da SDI-I do C. TST.

Deduzam-se os valores pagos sob idênticos títulos e comprovados nos autos, a fim de evitar enriquecimento ilícito.

Custas de R$ 319,07, pela Reclamada, calculadas sobre R$ 15.953,64 - valor arbitrado à condenação (art. 789 da CLT).

Intimem-se as partes. Dê-se ciência ao MPT.

E, para constar, editou-se a presente Ata que vai assinada na forma da Lei.

LUIS EDUARDO SOARES FONTENELLE
JUIZ DO TRABALHO

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