Os interditos proibitórios em caso de greve
1. INTRODUÇÃO
O uruguaio Héctor-Hugo Barbagelata reconhece, para o Direito do Trabalho, a existência da chamada “imanência do conflito nas relações laborais, individuais e coletivas”[1]. Caminha no mesmo sentido a doutrina de Sinzheimer, Kahn-Freund - “qualquer acertamento das relações entre empresários e trabalhadores resultaria sem êxito se a divergência entre os seus respectivos interesses não fosse abertamente reconhecida e articulada”, e também Giugni - “nenhum assunto do âmbito laboral pode ser separado do problema que o subjaz, ou seja, o das relações de poder dentro da empresa”[2].
Héctor-Hugo Barbagelata parte da premissa de que se trata de princípio elementar do Direito do Trabalho o “reconhecimento e garantias de liberdade e de ação sindical, incluída a negociação coletiva, os convênios coletivos e a greve” para, a respeito dos direitos sindicais, admitir que o exercício do direito humano fundamental da greve, especialmente em seus desdobramentos ou fenômenos colaterais, tais como ocupação de fábrica, piquetes e pedágios, possa afetar direitos humanos fundamentais de outras pessoas, como os que se relacionam aos serviços de saúde, educação, à propriedade, e mesmo ao trabalho dos não aderentes[3]. Sabendo-se que, conforme previsão da Declaração de Viena de 1993, aprovada pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, a essência dos direitos humanos reside na dignidade da pessoa humana, recomenda o autor, para os casos de episódios de greve, que haja ponderação de interesses no caso concreto, sem se perder de vista, porém, que a proteção de interesses de terceiros, se levada às últimas conseqüências, pode fazer com que pereça a eficácia das medidas resultantes dos direitos sindicais, tanto assim que há corrente do pensamento jurídico latino-americano que defende, para os casos de conflito com o direito de propriedade, a primazia da proteção do trabalho, com base no chamado princípio pro homine.
Hugo Barretto Ghione[4] diz que a natureza polêmica do Direito Coletivo do Trabalho advém, em primeiro lugar, do seu próprio escopo de institucionalização das relações entre capital e trabalho, de cunho fortemente político e visceralmente antagônico. Cabe ao dilemático Direito Coletivo conciliar interesses inconciliáveis no mais das vezes, sendo ainda assim inevitável a sua permanência na ordem jurídica, como mecanismo capaz de propiciar a subsistência das condições elementares de trabalho, pois, como bem acentua Mario de La Cueva, o direito do trabalho é essencialmente inconcluso.
Lidar com o elemento trabalho é penoso, a começar pelo fato de haver uma multiplicidade de aplicações cognitivas para o seus possíveis sentidos - filosófico, de teoria social, econômico, cultural, político, além da abordagem jurídica que, em nenhuma hipótese deve desprezar essas outras aplicações do vocábulo. Trabalho, tal como o conhecemos, é uma invenção do capitalismo, diz Ghione, reproduzindo o pensamento de inúmeros autores da modernidade. O certo é que, a partir da economia de mercado, o trabalho assalariado assume o papel de atividade relevante na esfera pública, permitindo que o trabalhador se insira na coletividade e assuma identidade social e pessoal. Mas a noção de trabalho, mesmo sob a ótica do trabalhador, não pode ser homogeneizado. Ghione cita Galbraith para lembrar as bipolaridades clássicas do trabalho: manual/intelectual; execução/planejamento; rotineiro/criativo; material/simbólico; objetivo/subjetivo. Ou seja, o trabalho é por natureza fragmentário e, assim, nada mais natural que seja categorizado. Há mesmo interesses antagônicos entre as classes diversas de trabalhadores no âmbito de uma mesma categoria e, não obstante, cabe ao sindicato representar essa diversidade de modos de trabalho em sede de negociação coletiva, sem perder a identidade dessa categoria por excelência fragmentada.
Há ainda um outro componente que compromete a atividade sindical na atualidade: a mudança do perfil histórico do trabalho. Na modernidade havia um compromisso sólido do capital com o trabalho[5], pois a sobrevivência do trabalhador dependia de sua contratação pelo capital, e este, o capital, por sua vez, dependia do trabalhador para se reproduzir e crescer – “capital e trabalho estavam unidos - dizia Bauman - e a fábrica era seu domicílio comum: simultaneamente um campo de batalha de uma guerra de trincheira e lar natural de sonhos e esperanças”. Esse mundo sólido foi substituído pelo mundo disperso e fluído do capitalismo pós-moderno, sem espaço para compromissos do capital com o trabalho – pior: as angústias proporcionadas pela instabilidade das relações de trabalho devem ser sentidas solitariamente pelos operários. A reprodução e o crescimento do capital já não estão atrelados ao trabalho, mas à ganância por riqueza, à ânsia pelo consumo e ao individualismo materialista, além do prestígio à propaganda de massa. Ou seja, a invenção do século XVIII, que fez do trabalho categoria homogênea de fator de produção, intercâmbio econômico, núcleo ou fundamento da vida social, naufragou na concepção atual do capitalismo, em cujo contexto apenas por acidente, e não por essência, o trabalho é meio de realização da vida humana.
Para Ghione, uma das expressões mais acabadas dessa ruptura do vínculo capital/trabalho é representada pela flexibilização do Direito do Trabalho, produto da terceirização e da descentralização empresarial, determinando confusão acerca da figura do sujeito empregador, oculto atrás de uma trama e de uma cadeia confusa de relações inter-empresariais, não raro com claros propósitos fraudulentos. Isso gera um grave problema existencial para o sujeito coletivo sindical, não apenas por conta de fragmentação da identidade do empregador, e sua ocultação, como sobretudo em virtude da perda de noção de coletividade por parte dos trabalhadores, e sua desarticulação, dispersos que se tornaram, sendo distribuídos em micro empresas, muitas vezes fictícias, no entorno da empresa principal.
|