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Os interditos proibitórios em caso de greve - Roberto José Ferreira de Almada

 

Os interditos proibitórios em caso de greve

         1. INTRODUÇÃO

         O uruguaio Héctor-Hugo Barbagelata reconhece, para o Direito do Trabalho, a existência da chamada “imanência do conflito nas relações laborais, individuais e coletivas[1]. Caminha no mesmo sentido a doutrina de Sinzheimer, Kahn-Freund - “qualquer acertamento das relações entre empresários e trabalhadores resultaria sem êxito se a divergência entre os seus respectivos interesses não fosse abertamente reconhecida e articulada”, e também Giugni - “nenhum assunto do âmbito laboral pode ser separado do problema que o subjaz, ou seja, o das relações de poder dentro da empresa[2].

         Héctor-Hugo Barbagelata parte da premissa de que se trata de princípio elementar do Direito do Trabalho o “reconhecimento e garantias de liberdade e de ação sindical, incluída a negociação coletiva, os convênios coletivos e a greve” para, a respeito dos direitos sindicais, admitir que o exercício do direito humano fundamental da greve, especialmente em seus desdobramentos ou fenômenos colaterais, tais como ocupação de fábrica, piquetes e pedágios, possa afetar direitos humanos fundamentais de outras pessoas, como os que se relacionam aos serviços de saúde, educação, à propriedade, e mesmo ao trabalho dos não aderentes[3]. Sabendo-se que, conforme previsão da Declaração de Viena de 1993, aprovada pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, a essência dos direitos humanos reside na dignidade da pessoa humana, recomenda o autor, para os casos de episódios de greve, que haja ponderação de interesses no caso concreto, sem se perder de vista, porém, que a proteção de interesses de terceiros, se levada às últimas conseqüências, pode fazer com que pereça a eficácia das medidas resultantes dos direitos sindicais, tanto assim que há corrente do pensamento jurídico latino-americano que defende, para os casos de conflito com o direito de propriedade, a primazia da proteção do trabalho, com base no chamado princípio pro homine.

         Hugo Barretto Ghione[4] diz que a natureza polêmica do Direito Coletivo do Trabalho advém, em primeiro lugar, do seu próprio escopo de institucionalização das relações entre capital e trabalho, de cunho fortemente político e visceralmente antagônico. Cabe ao dilemático Direito Coletivo conciliar interesses inconciliáveis no mais das vezes, sendo ainda assim inevitável a sua permanência na ordem jurídica, como mecanismo capaz de propiciar a subsistência das condições elementares de trabalho, pois, como bem acentua Mario de La Cueva, o direito do trabalho é essencialmente inconcluso.

         Lidar com o elemento trabalho é penoso, a começar pelo fato de haver uma multiplicidade de aplicações cognitivas para o seus possíveis sentidos - filosófico, de teoria social, econômico, cultural, político, além da abordagem jurídica que, em nenhuma hipótese deve desprezar essas outras aplicações do vocábulo. Trabalho, tal como o conhecemos, é uma invenção do capitalismo, diz Ghione, reproduzindo o pensamento de inúmeros autores da modernidade. O certo é que, a partir da economia de mercado, o trabalho assalariado assume o papel de atividade relevante na esfera pública, permitindo que o trabalhador se insira na coletividade e assuma identidade social e pessoal. Mas a noção de trabalho, mesmo sob a ótica do trabalhador, não pode ser homogeneizado. Ghione cita Galbraith para lembrar as bipolaridades clássicas do trabalho: manual/intelectual; execução/planejamento; rotineiro/criativo; material/simbólico; objetivo/subjetivo. Ou seja, o trabalho é por natureza fragmentário e, assim, nada mais natural que seja categorizado. Há mesmo interesses antagônicos entre as classes diversas de trabalhadores no âmbito de uma mesma categoria e, não obstante, cabe ao sindicato representar essa diversidade de modos de trabalho em sede de negociação coletiva, sem perder a identidade dessa categoria por excelência fragmentada.

         Há ainda um outro componente que compromete a atividade sindical na atualidade: a mudança do perfil histórico do trabalho. Na modernidade havia um compromisso sólido do capital com o trabalho[5], pois a sobrevivência do trabalhador dependia de sua contratação pelo capital, e este, o capital, por sua vez, dependia do trabalhador para se reproduzir e crescer – “capital e trabalho estavam unidos - dizia Bauman - e a fábrica era seu domicílio comum: simultaneamente um campo de batalha de uma guerra de trincheira e lar natural de sonhos e esperanças”. Esse mundo sólido foi substituído pelo mundo disperso e fluído do capitalismo pós-moderno, sem espaço para compromissos do capital com o trabalho – pior: as angústias proporcionadas pela instabilidade das relações de trabalho devem ser sentidas solitariamente pelos operários. A reprodução e o crescimento do capital já não estão atrelados ao trabalho, mas à ganância por riqueza, à ânsia pelo consumo e ao individualismo materialista, além do prestígio à propaganda de massa. Ou seja, a invenção do século XVIII, que fez do trabalho categoria homogênea de fator de produção, intercâmbio econômico, núcleo ou fundamento da vida social, naufragou na concepção atual do capitalismo, em cujo contexto apenas por acidente, e não por essência, o trabalho é meio de realização da vida humana.

         Para Ghione, uma das expressões mais acabadas dessa ruptura do vínculo capital/trabalho é representada pela flexibilização do Direito do Trabalho, produto da terceirização e da descentralização empresarial, determinando confusão acerca da figura do sujeito empregador, oculto atrás de uma trama e de uma cadeia confusa de relações inter-empresariais, não raro com claros propósitos fraudulentos. Isso gera um grave problema existencial para o sujeito coletivo sindical, não apenas por conta de fragmentação da identidade do empregador, e sua ocultação, como sobretudo em virtude da perda de noção de coletividade por parte dos trabalhadores, e sua desarticulação, dispersos que se tornaram, sendo distribuídos em micro empresas, muitas vezes fictícias, no entorno da empresa principal.
 
 
Juiz do Trabalho titular da 21ª Vara de Belo Horizonte, doutor em direitos fundamentais pela Universidad Carlos III, de Madrid, vice-presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (Ipeatra)

O direito penal do trabalho é um ramo praticamente inexistente no Brasil. O professor italiano Umberto Romagnoli observa, tomando um conceito de Nietzsche, que nele assenta a “má consciência” do ordenamento jurídico, ou seja, nessa parcela diminuta da ciência dos direitos escondem-se e reprimem-se seus instintos e sua vocação natural para a tutela da sociedade. A proteção do trabalho humano é ainda muito recalcada, reprimida pela consciência liberal. O charme da livre iniciativa, do herói empreendedor, ofusca o brilho tosco do labor e do suor do homem sem valia.

Por outro lado, a origem dessa disciplina está também muito marcada por um viés fascista. Em seus primórdios, no século passado, esteve ligada à concepção de proteção da produção econômica e não do trabalho, mais precisamente da garantia da manutenção da “força-trabalho”. Nessa linha, historicamente, o direito penal do trabalho servia inclusive à criminalização da greve.

Com essa dupla associação – recalque liberal e origem pouco nobre – o direito penal do trabalho foi convenientemente esquecido pelas universidades, adormeceu nas prateleiras das bibliotecas e na inércia de seus dispositivos legais homologou-se um completo abandono forense. Mas esse silêncio eloquente, na boca muda da lei, já começa a incomodar.

No estado democrático de direito exsurge, entretanto, um novo direito penal do trabalho que pode e deve encontrar sua pulsação natural na vida social. Liberando-se de suas raízes corporativistas, da pura garantia da força-trabalho, sua nova função na República passa a se voltar à proteção da pessoa do trabalhador, do meio ambiente de trabalho, dos direitos sociais, por um lado, e à consagração da liberdade sindical e de trabalho, de outro. Nessa última perspectiva, tende a fortalecer a repressão estatal às condutas antissindicais e às condições de trabalho análogas às de escravo.

O direito penal do trabalho não está associado ao direito penal clássico e, por isso, não pode nem deve ser articulado sob os mesmos princípios do liberalismo político que inspiraram os chamados direitos humanos de primeira dimensão. A nova tutela penal-trabalhista está muito mais associada aos direitos fundamentais de segunda geração, os chamados direitos sociais, que aos civis clássicos.

Nessa mesma ordem de ideias, as novas dimensões dos direitos humanos, quais sejam, os direitos ao meio ambiente e à bioética, desafiam uma tutela penal específica, com princípios reitores próprios e moldados a suas características.

O direito penal do trabalho está mais próximo ao novo direito penal econômico, da repressão aos chamados “crimes do colarinho branco”, que têm um histórico de impunidade e de tolerância 100%. Nessa esfera, cogita-se da penalização da pessoa jurídica e aproxima-se do direito administrativo sancionador.

A despeito dessa nova vocação tuitiva e de emancipação do direito penal do trabalho, esse ramo jurídico continua inerte na prática judiciária, principalmente, porque os atores institucionais responsáveis por sua aplicação não estão aparelhados e vocacionados para essa atuação no mundo do trabalho, mesmo por estarem assoberbados com outros tipos de demanda.

Além da vocação natural da Justiça do Trabalho para tutela penal-trabalhista, não é demais lembrar que esse ramo do Judiciário é o que tem menor taxa de congestionamento, segundo os últimos levantamentos estatísticos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), sendo, dessa forma, a Justiça com maior capacidade de atender a novas demandas sociais.

Uma vez posto em prática efetiva, o direito penal do trabalho irá, aliás, valorizar a concorrência sadia, reprimindo o dumping social e a concorrência desleal, fundada na precarização, na mercantilização do trabalho e no descumprimento dos direitos sociais. Os mecanismos modernos de transação penal, por outro lado, permitirão inclusive a ênfase em medidas pedagógicas, antes da intervenção meramente punitiva.

A fim de proceder à defesa dessa nova visão tutelar do direito penal do trabalho é que várias entidades representativas do mundo laboral – sindicalistas, juízes, Ministério Público, advogados, fiscais do Trabalho etc. – estão convocando a sociedade civil organizada para uma frente trabalhista em prol da competência penal da Justiça do Trabalho.

O que se percebe, hoje, é que há um consenso doutrinário no sentido de que a sistemática mais adequada e eficaz para a proteção de grupos hipossuficientes é a concentração ou defragmentação, não só da tutela jurídica, mas também da tutela judiciária, num único órgão, a partir da ideia de “unidade de convicção”, ou seja, a perspectiva de conjugar, simultaneamente, a tutela patrimonial à penal.

É no sentido dessa confluência interdisciplinar que foi promulgada a recente Lei 11.340, de 8 de agosto de 2006, a chamada Lei Maria da Penha, que, como se vê seus artigos 13, 14 e 33, concentra, num mesmo órgão judicial, a proteção contra a violência à mulher, tanto do ponto de vista cível como do penal. Nessa mesma linha aponta a novel lei espanhola de repressão à chamada violência de gênero.

Os direitos são construções do homem, em permanente elaboração, cuja evolução coincide com o desenvolvimento de nossa sensibilidade para a tutela dos direitos fundamentais, sem culpa e má consciência.

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